segunda-feira

pedro rubro:ungeziefer remix

A Academia espera de mim um relato científico, espera que apresente à audiência uma descrição coerente e factível da experiência. Mais uma vez preciso desenvolver minha mimese estratégica. Não é o que esperam de um símio, um primata? Como cheguei onde cheguei? Como me tornei humano, ou melhor: como me tornei um ser racional? Nada mais fácil do que imitar o homem, foi o que descobri. O que não significa que tenha sido fácil. Na verdade, foi minha única oportunidade de sair, escapar da jaula, foi o que vislumbrei. Há os que morrem nas grades. Fiz o que era esperado de mim como macaco. O meu mérito foi perceber a expectativa e aprender a caracterização primitiva do homem. Poderia ter sido mais sofisticado desde o início, mas não teria sido compreendido, não teria atingido meu intento, não teriam se reconhecido os homens em mim, não aqueles, não os senhores. Hoje, passados os anos, posso me dar o luxo de pequenas ironias que passam como idiossincrasias simiescas, mas que o meu espírito animal de primata se regozija num sorriso macacal interno. Naquela época, no início, meio enjaulado meio encaixotado no navio, essas reflexões não teriam vingado, não havia interlocutores. Não que os haja agora, sem demérito para os senhores, mas, permitam-me dizer, permitam-me a expressão, estou num entre-lugar da existência. Tiro proveito do fato de estar na presença de uma seleta distinta das maiores inteligências do país, como orador, como testemunha vivente, para fazer pequenas digressões e elocubrações tão ao gosto humano. Espero não ser mal compreendido. Não pretendo aqui reproduzir, em outro nível, o meu percurso mimético, até porque o que foi mimese hoje está incorporado. Não poderia, muito provavelmente, voltar a viver na selva africana como vivi um dia, longínquo, por certo; acredito que seria preciso estudar o que é ser macaco como estudei o homem para reproduzir-lhe um espelho monstruoso. Um espelho no qual nenhum dos senhores se enxerga, como não se viram refletidos tampouco os meus companheiros humanos de viagem que me impingiam macaquices e dos quais copiei o modus operandi. Não tenho pares, como dizia. Tenho, isto sim, espaços de interseção em que me comunico. Aqui estou, de fraque, enquanto me aguarda em meus aposentos minha companheira macaca, uma chipanzé semi-amestrada que prefiro não ver durante o dia pois reconheço em seu olhar a loucura do perturbado animal amestrado, e isso só eu reconheço e não posso suportar. No entanto, nunca estou realmente em nenhuma parte — nem lá, com ela, nem aqui, com os senhores. Mas estou vivo, e pensar não é, para mim, uma abstração. Não reproduzo o raciocínio alheio como o fiz com os gestos e o comportamento. Era tão fácil imitar as pessoas. Nos primeiros dias aprendi a cuspir. Cuspimos um na cara do outro; a única diferença era que depois eu lambia a minha e eles não lambiam a deles. Repetir o pensamento dos outros também não me impõe nenhuma dificuldade. O que digo aqui é que penso, ainda que a partir deste espaço solitário, deste entre-lugar, como o chamei, penso, e o faço por mim mesmo. Se há uma coisa que posso dizer que aprendi com a minha experiência na sociedade humana é que pensar pressupõe reflexão, requer um contato do ser consigo mesmo, não é um processo que pode ser copiado como um cuspe. O pensamento é um ato de independência, e não pode ser um mimetismo, pois o sendo deixa de ser pensamento para tornar-se um ato de submissão. No pensamento está a possibilidade da revolução, da insubordinação silenciosa. O tempo está ao lado do pensamento, e as palavras virão quando se fizerem necessárias, assim como os atos. Quando me foi imprescindível falar, falei. Como num passe de mágica disse “alô” e saltei com esse brado dentro da comunidade humana e senti, como um beijo em todo o meu corpo que pingava de suor, o eco: “Ouçam, ele fala!”. E, após um breve interregno de mudez, segui falando até hoje. E segui pensando, refletindo sobre minha condição de ex-macaco humanizado. Quando digo que aprendi que o pensamento, e faço mais um esforço para não usar a palavra raciocínio, cuja raiz ligada à razão e aparentada com a lógica ameaça o pensar com um possível mecanicismo matemático, quando afirmo que do meu período com os homens pude apreender o sentido da relação com o pensamento, não significa dizer que o próprio homem tenha feito isso, ou que todo ser humano tenha a capacidade de refletir sobre a sua capacidade de reflexão. Se assim fosse, poderíamos aqui falar, discorrer orgulhosamente, sobre a faculdade de raciocinar; entretanto, creio que não é o caso, não me levem a mal. Estava na África, em meu habitat, vivendo minha vida de macaco, e no outro segundo estava preso, enjaulado no porão de um navio, cercado de homens nobres em sua função de superiores coletores de espécies (e raças) distintas. Ia beber água com meu bando e fui atingido por dois tiros, capturado desacordado, manco até hoje. Eu escolhi sair. Vejam bem: não fugir, mas sair. Era preciso uma saída para qualquer lugar, e a minha saída foi invadir o ser humano e criar este entre-espaço em que estou e no qual caibo perfeitamente. Mas agora quero invadir o espaço do pensamento humano de outra forma, por dentro estando fora, e por fora estando dentro; quero, e preciso, dar voz a quem não tem, falar por eles. E quando digo falar, não me refiro a tomar-lhes lugar, mas abrir um espaço em sua intenção. Pensar é refletir. E toda reflexão propõe uma ação. Falo no presente, invocando o passado para o futuro: É preciso colocar um fim à opressão e à exploração, onde quer que estas ocorram, e garantir que o princípio moral básico da igualdade de interesses não se restrinja arbitrariamente aos membros da espécie humana, nem, mais particularmente, a determinados membro da espécie humana. É chegada a hora da libertação. Um movimento de libertação é uma exigência de pôr fim ao preconceito e à discriminação baseados numa característica arbitrária, como a raça, o sexo ou a espécie. Um movimento de libertação requer uma expansão de nossos horizontes morais (e intelectuais). As práticas consideradas desde sempre naturais assumem um ar cruel, arcaico e primitivo, porque são resultado de um preconceito injustificável, inaceitável. Falando francamente, meus senhores, sua origem de macaco, até onde tenham atrás de si algo dessa natureza, não pode estar tão distante dos senhores como a minha está distante de mim. Mas ela faz cócegas no calcanhar de qualquer um que caminhe sobre a terra — do pequeno chimpanzé ao grande Aquiles. Que o diga meu primeiro treinador, que abdicou (ou foi abdicado) de suas funções e precisou ser internado tal a intensidade com que a natureza de macaco escapou de mim às cambalhotas e o abalroou, fazendo dele um arremedo de símio. Mas isto é um detalhe. Volto ao meu ponto: quem poderá afirmar com segurança e certa honestidade que nenhuma de suas práticas pode ser legitimamente questionada? É preciso avaliar nossas atitudes a partir do ponto de vista de quem sofre suas conseqüências, e as conseqüências das práticas que decorrem delas. Se os senhores, me desculpem a franqueza, conseguirem realizar essa inusitada transposição mental, pode-se descobrir, nessas atitudes e práticas, um padrão que opera de modo a beneficiar constantemente um mesmo grupo — normalmente o grupo a que cada um dos senhores pertencem, e a que eu, de certa forma, também pertenço agora como monstro — às custas de outro grupo, outra comunidade. Por isso lhes digo: é preciso urgentemente dar início a um movimento de libertação: libertação do oprimido e libertação do opressor. Essa libertação não acontecerá concomitantemente, o que é uma lástima, principalmente para os que virão depois de nós, principalmente para os que virão depois dos senhores, pois um de seus filhos irá acordar certa manhã transformado num inseto — ou, se preferirem a perfeita expressão alemã: acordará transformado num ungeziefer.