sexta-feira

notas falsas I e II

I.
Na máquina-sampler, o operador do laboratório produz o texto secreto que flui da Biblioteca de Babel. A máquina não representa uma ordem superior, sua moral é a da experiência narrativa, não há dominação, apenas a potência do discurso. Aquele que opera, aquele que narra, aquele que age, aquele que lê, aquele que interpreta está entregue aos seus próprios recursos (e aos recursos do fluxo da escrita).

É preciso fazer ressoar as vozes através da minha, mas é preciso que elas percam suas fronteiras e timbres próprios e específicos para criar uma confluência melódica que forma uma terceira voz, um mesmo e, ainda assim, novo tom.

Não há aspas, a citação não existe. As palavras são minhas. Não importa quem fala. Sou quem pode dizer o que disse. Fui eu quem escreveu, digerindo, regurgitando e nutrindo. Abro as comportas e deixo que elas, as palavras, as vozes, tomem forma, se refigurem, se transfigurem, se fortaleçam. Eles alimentam, a máquina processa, eu escrevo e monto o texto atravessando. Um corpo em disponibilidade para si e para o outro.


II.
A literatura é um tom, ele me diz. Narrar tem mais a ver com música do que com palavras. Escrever é fluir o tom da música que circula pelo laboratório e por dentro de nós.

No quarto, não são as mulheres que vão e vêm, mas um homem deitado na cama tossindo. Ponha sua mão na minha testa um momento para me dar coragem, sussurra Kafka. Eliot se curva e diz: cada palavra é um fim e um começo. E no começo está o fim, re-cita ele. Toda ação é um passo dentro do fogo.

Não significa que, daqui para frente, não haverá forma na arte, diz Beckett a Auster. Significa apenas que haverá uma nova forma, e que essa forma será de um tipo que admitirá o caos, sem tentar dizer que o caos é na verdade outra coisa. Encontrar uma forma que acomode a desordem: eis a tarefa do artista hoje.

Rancière diz, ele me diz, que a impossibilidade de delimitação entre uma noção comum e o conceito específico de uma coisa definida não é um defeito atribuível às imperfeições da língua ou atraso do conceito. “Literatura” é um desses nomes flutuantes que resistem à redução nominalista, um desses conceitos transversais que têm a propriedade de desmanchar as relações estáveis entre nomes, idéias e coisas e, junto com elas, as delimitações organizadas entre as artes, os saberes ou os modos do discurso. “Literatura” pertence a essa delimitação e a essa guerra da escrita onde fazem e se desfazem as relações entre a ordem do discurso e a ordem dos estados.

A literatura é, sem meias palavras, aquilo (um dos aquilos) que pode mover as relações, e pode nos mover. As palavras se movem, a música se move.