sábado

notas falsas V

Ruína, complemento e suplemento

Memória e tradição. A visão de Benjamin sobre melancolia e ruína: o que se quer é complementar — no sentido de construir de novo o imperfeito, o passado traumático, a utopia que se perdeu — ou suplementar — retomar a ruína com o corpo do presente, fazê-la viver e transformá-la numa outra coisa, numa terceira instância (a primeira é o passado, a segundo somos nós, o presente, e a terceira, o que está por vir e ainda não é, o que iremos fazer com os destroços, a possibilidade de fazer), pergunto?

Nascemos com os mortos.

Para Silviano, o espaço da ficção contemporânea é simplesmente atópico, excessivo, suplementar. O complemento nos dá a impressão de ter em mãos alguma coisa incompleta que estaríamos completando. O suplemento não, o suplemento é algo que se acrescenta a alguma coisa que já é um todo. O suplemento, via pastiche, por exemplo, não rechaça o passado, dialoga com ele, não nega a tradição num gesto de escárnio, desprezo, ironia. O suplemento aceita o passado como tal, e a obra de arte nada mais é do que suplemento, responde. É preciso gerar formas de transgressão que não sejam as canônicas e já tradicionais da paródia, ou de uma pretensa ruptura. E uma das formas transgressoras que mais incomoda, como o elefante da música, é assumirmos o estilo do outro. Ou melhor, digo: ser um através, escrever como um através, de si e do outro — de todos os outros, que somos nós também.

A literatura é um espaço fraturado, onde circulam diferentes vozes, que são sociais. A literatura não está posta em nenhum lugar como uma essência; ela é um efeito. O que torna um texto literário? Interessa, a mim, ele diz, trabalhar nessa zona indeterminada em que se cruzam a ficção e a verdade. Antes de mais nada porque não há um campo próprio da ficção. De fato, tudo pode ser ficcionalizado. A realidade é feita de ficções.

A memória como postura ética. E, ao mesmo tempo, diz, é preciso matar as origens. A verdadeira história da literatura é uma história de ladrões, diz um deles.

O astucioso, diz Silviano, não trabalha com princípios morais, isto é, a escrita astuciosa, seja ela biográfica, memorialística ou, pura e simplesmente, ficcional não tem pudor de mexer, manobrar, manipular, inventar a história do outro, o outro, inventar a si mesma.

O filho interfere na publicação da obra de Graciliano Ramos. A sua biografia o apresenta como escritor, o seu comportamento o coloca como tutor, censor, interventor. A irmã de Nietzsche editando os escritos do irmão depois da morte dele e a partir de uma moral pequeno-burguesa que ela intuía dividir com a sociedade e que circulava por suas artérias.

Ele incorpora as primeiras sensações de Graciliano fora do cárcere. Invade o corpo frágil e animalizado, o corpo sem caráter do outro, e o faz viver através da literatura, através da memória fictícia, inspirada na vida&obra de Graciliano, mas também por meio dos textos sampleados do próprio. Quando quer usar palavras de Graciliano, faz outro tipo de incorporação: se apropria dos escritos do outro e os incorpora ao seu, em vez de mediar a voz de Graciliano através da sua. Contudo, diz, em entrevista, que “assumiu” (palavras dele) o estilo de Graciliano, e, pior ainda, o Eu do outro. É justamente por incorporar esse Eu-Graciliano, esse escrever como se, que a experiência funciona — justamente porque ele escreve com um Eu-Graciliano que não é e nem poderá ser Graciliano porque este Eu-Graciliano é um Eu-Outrem gracilianizado, um Graciliano via ele. E o estilo desse Eu será sempre, para que a experiência tenha força, vigor e sentido, e não seja uma mediunização à la Chico Xavier, um através, um como se. É porque ele não consegue nem pode (e nem quer, no meu entender) emular o estilo do outro, e sim evocá-lo, que a voz de Graciliano pode ecoar e reviver no texto do outro.

Entre o sacrifício e o jogo , entre a prisão e a transgressão, entre a submissão e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão — ali, aí, aqui, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, aí, aqui se realiza o ritual antropófago, o procedimento sampler.



[samples de: silviano piglia e matafina]


2 Comments:

Blogger Vânia Vidal said...

Belo, belíssimo espaço.

Esse ofício da escrita tem como prerrogativa o abandono de si para se estar, ou ser, um através, um "estar de um outro. Inapreensível" como diria Roubaud. Será que todos pegamos emprestado??? Somos meio ladrões. Isso é fato. Então resta a questão: Dolosos ou culposos?? Bom... vai depender do ponto de vista! No entanto, ao que parece, quem escreve sabe que mergulha no abismo, no espaço de todos os espaços,no "entre"- mundos, híbrido, do si, do outro e do si-outro. Seja lá como for, a realidade é sempre aquilo que falta. (meio sem sentido esse comentário, o primeiro)Daí o que se segue: essa necessidade onerosa de ocupar essa falta. E esse retorno infinito da ausência. Nesse limiar entre o que há e o que falta [da(s) realidade(S)] é que se situa a Literatura.
Abraço,

16/2/06 23:39  
Anonymous Anônimo said...

Onde está o "notas falsas IV"? Volte a escrever logo, sua escrita é fantástica !!!!!!!!!!

8/5/11 09:44  

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