quinta-feira

The Buenos Aires Sessions Vol.1: Dario y Maxi, todo Estado es represor





Voltamos pela Rivadavia.
Pichações políticas em todos os muros;
a consciência dos hermanos nos impressiona.
Dario y Maxi no estan solos
(são os chicos assasinados na rebelião de 2001-2002).

Todo estado es represor.
Um povo que oprime outro povo nunca será um povo livre,
nos dirá mais tarde o humanista Israel Levy.













terça-feira

trespassado pela extinção

Eu não me mexi. Fiquei observando a consumação do que me pareceu inevitável desde sempre, inescapável desde o início — conforme pensei enquanto observava e não movia um músculo sequer, uma palha mesmo, como se diz, enquanto assistia a esse espetáculo que desde que me lembre pareceu-me sempre irreversível, intransponível. Provavelmente, muito certamente até, não havia mesmo o que se pudesse fazer para conter o que se convencionou chamar, com muito mau gosto é certo, devo dizer, de destino, o que está escrito, a mão de Deus, então você apenas olhou, parado, estático, mas com a cabeça a mil, como dizem. Vejo agora nitidamente meu pai fraquejar, vejo claramente o seu cansaço, meu pai estava fatigado, sem dúvida, era possível vê-lo assim morto, estava mortinho, como se diz, dizem, e seus músculos pediam descanso, como era facilmente previsível, qualquer imbecil pode prever facilmente, sem dificuldade alguma mesmo, o que chega a ser ridículo se imaginarmos que nada foi feito nesse sentido, e isso ficou claro quando observei ainda outra vez toda a cena em minha cabeça, é ridículo imaginar que nada tenha sido feito nesse sentido, de forma a impedir que os músculos fraquejassem, e então, como disse, com meu pai cansado, estando meu pai cansadíssimo, como posso imaginar, os músculos de seu corpo, em especial os trapezóides e os deltóides, músculos do braço, justo esses músculos, como era de se supor, começaram a fraquejar, como já disse. Então estou aqui observando toda a cena, e vejo meu pai lutando contra a fraqueza e o cansaço de seus músculos, e ouço minha mãe com uma de suas estúpidas cantilinárias infinitas a assombrar os ouvidos do seu marido e do seu filho, meu pai e meu irmão, pobres idiotas, todos alocados em seus assentos de couro e respirando, convivendo com o aquecimento perfeito do jaguar de meu irmão, que sabe Deus porquê não estava ao volante. O caminhão perdeu o controle. Por alguma razão, uma razão banal certamente, o motorista perdeu o controle sobre o veículo e isso determinou a minha orfandade.

sábado

The Buenos Aires Sessions Vol.1: Santiago y El Ruiseñor



El Café Bar Ruiseñor. Andando pelas Las Heras, a caminho do caminho, esbarramos nos anos 50. A sensação é a de que entramos no túnel do tempo, realmente. Impressão de que nada mudou, ninguém mudou (sequer de roupa ou cabelo) nos últims 50 anos (e talvez mais, talvez a década seja a de 40). O garçom, viejito (siempre los encuentros com los viejos “clasicos”), usa um paletó de vendedor de amendoim de circo (ou de recepcionista de hotel antigo). Entramos para um café e un cigarrillo. A luz, ainda que deixe o lugar claro, dá a impressão de ter um filtro temporal e cria um ambiente chiaroscuro (como os desenhos de Pratt quando coloridos) que está em suspensão espaço-temporal. Miró vê tudo com olhos em sépia. Ao fundo, na parede, um quadro antigo com o escudo apagado do Independiente (o maior ganhador da Libertadores, dizem sempre).




Santiago, o garçom, fala de forma incompreensível (a princípio). É preciso acostumar-se com a música. Está no bar há pouco tempo, ficar em casa corrói o espírito, ele diz. A voz parece sair de uma caixinha perdida em algum canto esquecido da vida. Hay un tartamudeo propio del lenguage argentino que me llena de uma extraña exaltación. Un ritmo da, do, da, da, interno a las palabras, diz Gombrowicz no “Diario argentino”, escreve Piglia nas suas “Anotações sobre Macedonio” (e depois não consegue mais encontrar a nota. Yo tampoco). Uma letra contra a outra, diz Gombrowiz, escreve Piglia, pedregulhos numa lata. A lata de Santiago parece estar revestida por cortiça, no fundo do mar, transmitida por um barbante de um “telefone sem fio”. Indagamos sobre El Ruiseñor, e ele diz que es un bar centenario, que a filha do dono, persona muy buena, está na Espanha, e que o movimento não é mais como antes (o tom sempre o mesmo, lleno de melancolia). Qué hacer?, diz. Tento gravar a experiência de ouvi-lo falar, mas as pilhas não têm mais força (esquecer para lembrar — a gravação rouba a alma, dizem os índios).
Saímos. Miró esquece algo e volta. Aparentemente, Santiago não o reconhece. Voltaremos ainda duas vezes, mas não é possível saber se somos, ou não, reconhecidos.
A caixa se abre no fundo do mar e solta bolhas.

anti-tauromaquia?

2.7.5
kafka-leiris




Kafka mostrou que o que importa não é ser o matador,
o toureiro supostamente corajoso, o caçador.
Importa ser o touro, a caça, a vítima.

Não para vingá-la ou vitimizá-la, para fazê-la viver em igualdade
— fazê-la existir para além da caça; o alvo só existe enquanto tal.

Assumir o “ser menor”, encurralado, invisível em seu grito.

Esta lição INVERTE a metáfora e as analogias clássicas (e clichês)
da literatura como caçada que reforçam o domínio,
a soberba da "glória humana".

K. "acorda" o ungeziefer que nos dá o brilho vão.
Desestabiliza o domínio de Abel (sem precisar ser Caim).


quarta-feira

The Bs.As. Sessions. Vol.1: táxi



No táxi, o motorista pergunta de onde somos.
De que ciudad?
Rio? Ah, maravilloso, Rio de Janeiro es belísimo.
E que les parece Buenos Aires?
Sensacional, dizemos.
Ele arregala os olhos, realmente intrigado. Quase perplexo.
Pero..., son del Rio..., si, Buenos Aires está bien, por supuesto,
pero moran en el Rio...
E sorri. Sorrimos de volta.
Bs.As. está perfecta, es preciosa, dizemos.
Pero..., son del Rio...

Queres cambiar?, digo.
(sorriso largo, e desconfiado: que sim, ele diz)


segunda-feira

The Buenos Aires Sessions Vol.1: libreria anticuaria



Uma banca de livros antigos em la feria.
Pergunto pela edição de Ferdydurke traduzida pelo coletivo de abnegados capitaneado por Virgilio Piñera (publicada em 47, foi a primeira tradução do livro para outra língua, feita sem dicionário, direto do polonês, com Gombrowicz mal falando castellano trabalhando em conjunto com o grupo). El Viejo Librero diz que tem na libreria e me dá um cartão. Dentro do cartão está escrito: El libro que ud. busca se lo encuentra. La libreria La Cruz del Sur (que não conseguiremos visitar). Ele não está certo de que seja essa edição (e acabo por comprar a atual da Seix Barral que, segundo o prefácio de Sábato, preserva a tradução lendária).

Chega O Conde (que ainda não sei que é O Conde). Figura “distinta”, alta, bigode espesso de conde virado para cima, cabelos grisalhos ondulados, óculos impossíveis (enormes, pretos, quadradões e com as lentes sujas), uma capa por cima do terno.
O Conde diz: Bon soirée, grand maître! El Viejo Librero levanta os olhos de si mesmo e parece ser percorrido por uma fagulha, mudando completamente de tom: de uma lentidão modorrenta de fim de domingo a um ânimo jovial e alegre: Hola, maestro!, responde, e começam a conversar em francês.

O Conde fala de uma proposta que recebeu para comprar os cinco volumes do “Cosmos” de Humboldt. Passam ao castellano. O Conde diz que parece um bom negócio, El Viejo Librero concorda (tenho a sensação que uma outra negociação, futura, se arma sutil entre os dois). Segue uma conversa curta, de tom aristocrático — um livro que toma forma e vida ao meu lado. Como inicia, acaba, um raio do tempo no meio do nada.
Adieu, grand maître! Adiós, Conde! Adiós, maestro!

(E não é mais necessário comprar, ou falar, de Gombrowicz ou Ferdydurke — ele acaba de “acontecer”)

sábado

bl ack sa gain st wh ites




sempre a vontade imperativa de organizar, separar, selecionar
inferno na torre racional é o seu oposto, cartas voando chamas por toda a parte
quem indecide, divide, se ramifica e se dilui,
isso não é invasão, esto no es una invasión, pibe

e então os vários escaninhos abertos para guardar os pensamentos
mas tudo se cruza e se engole e se revolve o tempo inteiro
isso é a invasão, esto es una invasión, puto perro
(esto es un atraque)
e sempre a volta à digressão, duzentas mil pontadas de luz dentro da cabeça
escrever aqui ou ali
os escaninhos ficando cada vez mais cheios de música
afogando os ouvidos no deleite que transcende o que deve ser transcendido
transcindido


mas não há promesssa, meu amor
ilusão&torpor

e as novas fotos que guardam o futuro ainda estão cheias de pó
la madre perdida


seres larvais subindo as paredes da pele
a torre invadida, volume máximo, fogo alto
esta é a nossa casa-casca flamejante
babel era o caos e eles perceberam, grita o viajante-defunto
olhos amarelos, um fígado em débito com o corpo


não se fala em eu/s

uma história muito antiga que não acaba
a vida não tem data (tem dimensão)
condensar para reforçar dizem as vozes sussurantes


sentido? bata continência & vá em frente

segue à espreita o vagão-phantomas
do céu ao inferno, da terra ao afundado atalante
o filme enrolado, as fotos veladas, belos olhos presos pra sempre ao passado
a força está aqui, onde sempre esteve, ao alcance de dalila

passeando pela praça com o cão, mão na coleira, mão no bolso
folhas no chão, sapato brilhando, desejo de fumo, jornal embaixo do braço
dentro da galeria em frente à praça, o sorriso da menina que estuda filosofia só pode existir fora do seu próprio tempo
aqui não há nada, diz o motorista de táxi por ela
realmente o futuro está longe da praça para este sorriso que prefere a metafísica à filosofia contemporânea
está longe de si, e é só lá, neste lugar fora de si, que é possível cruzá-lo