domingo

The Bs.As. Sessions Vol. 1: domingo en la feria I

Idiotango

Tentamos o ônibus para la Feria de Santelmo, mas o motorista nos enxota porque, além de demorarmos a subir e fazê-lo pegar o sinal vermelho, não temos moedas trocadas ou la boleta (e nem sabíamos que era para ter). É o favor que os idiotas nos fazem às vezes. Tomamos um táxi, chegamos em 10 minutos, quase o mesmo preço de três passagens de ônibus. O lugar está cheio de gente, turistas para todo lado, brasileños acá e allá. A idéia de comprar uma garrafa antiga para servir a soda que os portenhos tanto usam vai por água abaixo quando percebemos que é a miniatura do Cristo Redentor local.




Paro numa banca de artigos de guerra. Vários bottons nazistas, fascistas, fotos de Hitler. Fetiche infantil e estúpido ou fanatismo racista? Lembro do prato nazi em “Beleza americana”. E também do livro de Goñi sobre o contrabando de nazistas para a Argentina negociado entre Perón e o III Reich em queda. Deixo a banca e seu dono, um velho pequeno de feição intransponível (seria ele um ex-SS? Alguém se torna um ex-SS?), pensando na hipótese de Tardewski sobre o encontro de Kafka e Hitler em Praga e em seu ataque contra Heidegger (o homem que colocou na filosofia alemã a sua touca de dormir kitsch, diz Reger, escreve Bernhard).

terça-feira

The Buenos Aires Sessions Vol.1: la confitería Ideal II

Ambos Mundos

Parado na porta espelhada, na volta del baño, começo a sentir os efeitos da viagem temporal. O tempo: em um dia e meio, a distância da vida cotidiana é absoluta.
Soy un argentino, no soy un argentino, mejor: soy un local.

Ciudad de libro, acá no es un cine, sino una narración (que se va imprimiendo en mi cuerpo), una prosa (con gotas de poesia) — como não produzir tantos grandes e maravillosos escritores? Voltando à mesa percebo o órgão e o viejo músico que lhe dá vida.





Chocolate quente. Fora chove. El viejo Miguel sigue hablando a los chicos. K. está enfeitiçado. Começo a escrever na caderneta — o tempo: em um dia e meio a distância da vida cotidiana é absoluta. Lentamente, sinto que vai me tomando una epifania: el son de la musica del tango – el viejo Miguel com sus estorias – el otro viejo tocando el órgano – la confiteria e su teto clasico – los ojos llenos. Estoy en casa (hasta siempre).

(Uma anotação anterior à viagem: Para mim não é (nunca foi) Paris, e sim Buenos Aires a cidade do imaginário da escrita, a cidade mítica da escrita, o lugar do escritor. Uma genebra no Ambos Mundos.)





Antes, ainda en el baño, penso em Dimitroff Otanos, o russo que foi comprar cigarros e voltou 30 anos depois. Viver uma outra vida, assumir um outro eu guardado, cortar o passado e incorporar outra história. Penso também em Benjamin: mover a ruína, e não ser imobilizado pelo lamento. Ahora es la única hora possible.

No apartamento-base (vizinho à última morada de Macedonio), horas debruçados sobre o livro de Kuitca. Arte é construir realidades. Si yo fuera el invierno mismo.




quinta-feira

The Buenos Aires Sessions Vol. 1: la confitería Ideal

Miguel



En la confitería Ideal, Miguel, el viejo italiano, nos encontra.
Pára ao lado da mesa, segura a bengala e olha fixamente para mim e para K. Sorri um sorriso de mil anos. Abre a mão para K., que retribui e ganha um cumprimento que é quase um golpe. Faz o mesmo comigo, mas não tenho tanta sorte e levo um tapa (afetivo) no nariz. Ele se desculpa e segue sorrindo. E começa a falar como se jamais tivéssemos interrompido nossa conversa ancestral.
No andar de cima há um salão de tango. Embaixo, o café, um pequeno palco, um órgão e outro viejo sentado atrás. Empieza a tocar. Não conseguimos perceber a origem da música.
Miguel diz que esteve na guerra, luchando em Africa, preso, viu de baixo os campos, o sofrimento.
O pé direito gigantesco do café cria uma sensação irreal de desplazamento do que está lá fora, do Rio, do Brasil, de casa.
Estive aqui sempre.
Veio para Buenos Aires há mais de 50 anos, siempre en la Ideal.

quarta-feira

The Buenos Aires Sessions Vol. 1: la viuda del tango perdido


NO HAY BANDA VARIATIONS
(santelmo, la feria, el fuego)





hable de mis hojos, orso, describe la confiteria ideal en su reflejo, reflejo de mi amor por la música, por miguel, el viejo (que lindo fue!), mi viejo italiano, describe lo que si pierde, el tablado, lo que ya no temos, tán pronto, descolorido.



llorando.

el tango ya se va, no me apuntán la cabeza, tira la vida, muerte a la poesía, tengo mi sombrero, y mi muñeca, tengo el salón flotando conmigo, miguel contando la africa e se me escapan los sueños.




no me mires, chico.
no teneía la capacidad de verlos como están ahora, ver a mis ojos.
pagarias el precio de la opacidad ireversible del dolor sin brillo, sin fuerza?

el rostro es mio.

no hay banda, no más.




los ojos flamejantes de la viuda del tango perdido (no se los describe).

domingo

The Buenos Aires Sessions Vol. 1: autonauta

Dia 1: viernes
Táxi de madrugada, chego com Miró ao aeroporto: check-in rápido, café com leite e
pães de queijo na espera. Encontramos K. logo depois. Uma viagem que seria solitária, uma viagem que seria outra viagem, e ainda outra (como o texto) anterior, transformada em uma ação-experiência entre amigos.
Os viajantes somos nós.
Na janela, eu. K. no corredor. Sorte grande: ninguém na poltrona (assento é mais adequado) do meio. Miró algumas filas atrás.
Primeiras conversas sobre “Respiração artificial” com K.: Kafka, Borges e as teorias de Renzi e Tardewski. Miró terminando o “Desonra” (tradução estranha para “Disgrace”, comentamos mais cedo).

Na conexão inesperada em São Paulo, melhor, em San Pablo, falamos os três de Coetzee. A impressionante disciplina do osso, uma narrativa que não cede nunca. A impaciência surge entre a objetividade cortante — ser impaciente, escrever impacientemente, não significa descuidar de cada acorde, de cada vírgula do encadeamento da narrativa.



No avião Gilberto Gil, em má forma, segue escalpelando as dreadlocks de Robert Marley. Depois, sucessivas informações despejadas de forma incompreensível pelo comandante e seus comandados: o espanhol é uma afronta e o inglês, um pastiche do alemão.
Um aviso: as autoridades sanitárias argentinas determinam a esterilização dos passageiros e da aeronave, e, portanto, seremos (des)insetizados (!).
O inseticida é natural, afirma a aeromoça. Ficamos perplexos, e somos realmente submetidos ao contato, bombardeados efetivamente pelo aerosol purificador (natural, dizem, mas fedorento e agressivo como os “artificiais” — índice: a natureza é olorosa e violenta!).
Ouvindo “Speachless”(do K&D Sessions, que será a trilha da viagem), janela aberta: a bandeira argentina no horizonte — céu azul sobre nuvem branca (o nome do quadro).
De Copacabana a Ezeiza, salto no espaço-tempo. Na autopista para o centro, sensação estranha de entrar em outra dimensão, como um percurso intestino interplanetário em direção a outro estômago-urbe, autonauta da cosmopista levado pelo táxi.

quinta-feira

The Buenos Aires Sessions Vol. 1: el humanista Israel Levy

Eu e K. entramos numa pequena loja de bolsas e mochilas. Nas vitrines, vários recortes de jornais e revistas e outros papéis. A loja está fechando. Um senhor (un viejo, otro) que parece ser o dono pergunta sorrindo se queremos ajuda. Respondo que não é necessário, volvemos mañana.
Ele me olha (tenho a sensação de ser lido) e pergunta de onde somos.
Com a resposta, os olhos brilham de uma forma e ele abre um sorriso de esfuziante prazer. Adora o Brasil, los brasileros, la musica brota, la arte brota em Brasil, diz. Tom, Caetano, Milton, Chico, João Gilberto, como no escuchar a Elis Regina?, maravillosa. Pede que fiquemos, quer conversar e nos mostrar algo. Miró fuma um a dez passos, na rua.
Estamos completamente surpresos (e felizes). Perguntamos se não quer se juntar a nós, estamos indo ao El Ruiseñor, aqui ao lado. Tengo mi grupo de trabajo ahorita.


el humanista, por miró/pauperia

Entra uma cliente. Atende a mulher com a filha e escapa inúmeras vezes para nos mostrar os recortes colados nas vitrines e para seguir a conversa. Grandes escritores también. Tengo acá “Memórias do cárcere”, que escritor es Graciliano Ramos. E Machado, Guimarães, Vinícius. Começa a falar de poesia, o poder revolucionário das palavras. Nos vidros, Gabriela Mistral, Drummond, Neruda, Pessoa. E recortes sobre resistência anti-opressão no continente, e na Palestina. A cliente se vai, sorrindo com nossa conversa (será que percebe o poder desse encontro metafísico ou é, para ela, apenas mais um exotismo banal entre un viejo simpatico e tres turistas?).

Ele quer falar sobre seu grupo de trabajo. Vamos ao balcão e ele nos mostra um abaixo-assinado contra o muro que Israel contrói para isolar os palestinos. Me llamo Israel Levy, para que usteds veán que lo que me importa es la humanidad, diz. Ha leído en algún hogar una frase que mi gustó mucho: Un pueblo que oprime otro pueblo no puede ser un pueblo libre. Há duas assinaturas de brasileiros. Sharon es un criminal!, diz, enquanto mostra o material do grupo de trabajo iniciado no Fórum de Porto Alegre. Assinamos.


Es la essencia de la humanidad, la solidariedad, diz Israel (um irmão de Lévinas vendendo mochilas e distribuindo afeto e bondade ao sul do tempo). Enquanto nos despedimos, tentando expressar nossa honra em conhecê-lo, un honor para nosotros, gratidão pelo momento mágico (e que as palavras não serão suficientes para recordar), percebo seus olhos cheios. Um abraço forte em cada um. Já na rua, vejo que esqueci a sacola de livros. Volto, pego os livros, ele me olha, as lágrimas descem pelo rosto jovial del maravilloso viejo Israel. Me emocionarán muchíssimo usteds, chicos, e me dá otro abrazo.
Consigo gravar um trecho das palavras de Israel, da nossa conversa. Tom e freqüência. Um fragmento perdido da bondade e da solidariedade humana.

terça-feira

The Buenos Aires Sessions Vol. 1: no El Rapido

16h42: no El Rapido.
Tres ginebras e una quilmes litro.




Esbarrando no “mundo clássico”: um outro tempo, mágica pura, estamos entrando, estamos dentro do mito criado, e ele está vivo.
O caminho: saindo da Charcas – final da rua – eu e K., uma foto dos Chicos Bestiales contra o muro.

Ginebra tastes like perfume, diz Miró.
El Rapido contém os três pilares da civilização argentina, continua. O tango (foto de Gardel na parede), o futebol (a seleção nos calendários) e os cavalos (as corridas na TV, as fotos do proprietário com os jóqueis acimas de nossas cabeças).
Uma mulher passa por mim e sobe ao baño. Um travesti, corrigem. Volta (é um travesti, realmente, um travesti-estereótipo, e feio). Ao lado do El Rapido está Kim Novak, bar moderninho com a bandeira do arco-íris na janela. Mais tarde, jantando com amigos portenhos, ficamos sabendo que esta é uma área de travestis. Não conseguimos conhecer Kim Novak, siempre cerrado.
Quando o traveco fecha a porta do bar, o esteorótipo masculino flui. Que liguem o ventilador, diz o homem do balcão. Es um viadito, diz outro. Otra quilmes más, pedimos. A conexão feita em cima do preconceito é linguagem universal. Amizade de bar, boteco porteño, otra ginebra. Todos obreros acá. Problema sério nos dentes (falta de) dos amigos. Um trabalha nas corridas, treinou cavalos no Brasil. Falam de futebol, que vão cantar mais tarde, e vai se quedando más tarde e más quilmes (otra más, por favor!) e conversamos, damos risada e o tempo passa (não passa).




Saímos pelas diez, e a cantoria fica para manaña, estamos convidados. Tempo de viagem, sem relógio, sem telefone, sem referência marcada que não as que são constituídas dentro da própria viagem.


segunda-feira

The Buenos Aires Sessions Vol.1: cold turkey

Esquecer para lembrar.
A viagem está no corpo. Impregnada.
Esquecer para lembrar.





Chegamos ao Rio anteontem à noite, uma sexta-feira,
dia estranho para voltar (para onde vivemos).
O fim de semana é de mal-estar e febre.
Abstinência da viagem, cold turkey do outro lugar
(de um outro lugar).





Volto, permaneço.


sábado

The Buenos Aires Sessions Vol.1: wanna be

Uma viagem.




I.
Se dá uma história não sei, mas dá uma viagem. E essa é uma outra viagem, marcada há mais de cinco anos, teimando em adiar a si mesma.
A primeira viagem, dos Invasores de Corpos, sampleada e remixada a partir dos relatos de outros, se perde no trajeto muito longo até a Patagônia (o mais próximo que chegarei será o Banco da Patagonia na Corrientes).

O telegrama de Corto ficou em cima da mesa, a passagem de avião chegou antes e me rendo à minha época. Aqui estou.
Além do mais, não quero contar histórias. A idéia, para mim, é escrever impressões, como digitais que marcam o meu corpo enquanto circulo pela cidade.

A cidade é Buenos Aires (sempre foi).

II.
(Você é um argentino wanna be, uma amiga me disse há tempos.
Qué hacer?, como diz el viejo Santiago no primeiro dia que entramos no El Ruiseñor.
Um tio argentino na família me pareceu desde sempre um elemento de estranheza intrigante na família, uma espécie de possibilidade de transpor lugares e diferenças, atravessá-los, a idéia de que há diferenças mas não fronteiras.
De alguma forma, isso funcionou como um vírus que foi se transformando e ganhando outras formas e cores com o tempo. Ferreti e El Lobo Fischer com a camisa alvinegra, estufando as redes adversárias e a imaginação de um pequeno torcedor de cinco anos. Depois, Doval, do outro lado. A copa de 74 vista no apartamento do tio portenho e da tia (absolutamente brasileira) que depois foi desapropriado para a ampliação do Miguel Couto. O time de 78, clássico no botão, Bertoni, Kempes e Valencia, e Ardilles, Passarella, Tarantini, Fillol.
Depois, bem depois, a literatura e a transformação (para mim) de Buenos Aires em cidade mítica da escrita. Renzi e Steve no Ambos Mundos falando de Macedonio, Arlt, Borges, Sur, Gombrowicz. Y Piglia, Cortázar, Puig, Lamborghini, Aira, Saer.)

III.
Este texto era para ser outro texto, e ainda um outro primeiro. E, no entanto, nunca será nenhum dos três, o texto imaginado nunca será como concebido. É assim que se escreve, é assim que deve ser, ele diz (aquele que escreve diz).



sexta-feira

mapa del viaje II




Em cima da mesa, ao lado das fotografias empoeiradas, as passagens. Reler o telegrama de Corto: viagem de navio pt patagonia pt. Diz que sente falta do Ambos Mundos, das conversas com Renzi e Tardewski cheias de fumaça e genebra.
Pratt não pode vir.

A foto clássica no porta-retrato de moldura metálica que está sobre as passagens. A expressão de Butch é de uma tranqüilidade admirável. É o único que olha na direção da câmera, um sorriso quase que disfarçado nos olhos, os lábios levemente puxados para a direita esticando o bigode fino. Confiança, está seguro e relaxado na cadeira, olha a câmera como olha o futuro, uma longa e ininterrupta viagem para a posteridade: estou pronto, parece dizer. Não há arrogância, o chapéu-coco levemente inclinado para a esquerda, gravata, colete, paletó, corrente do relógio de bolso, tudo conforme. O Kid quer se levantar, a mão sobre a coxa e os ombros armados para a frente revelam uma certa impaciência. Os dois estão sentados, nas pontas, o trio restante no meio. Os ponteiros, no futebol, devem abrir pelas laterais do campo para forçar a defesa a sair da área.

Chatwin chega amanhã. Sempre obcecado pelo nomadismo. Yaweh é um deus do caminho, percebe?, pergunta. É possível um deus que ame os sedentários?

Quando Caim tentou dissimular a morte do irmão, o castigo foi a errância. Talvez a sabedoria de Deus tenha presumido que incorporando o modo de vida de Abel, Caim dissolveria seu rancor no deserto e entenderia que a vida é sagrada. E Caim criou a cidade.

quinta-feira

mapa del viaje I

Um e-mail aos editores com el mapa del viaje:

Fazer uma triangulação entre três personagens e sua relação com a Patagônia, com a Argentina. Os personagens: Bruce Chatwin, Hugo Pratt e Corto Maltese. Todos falecidos (vale para Corto também?).






Chatwin escreveu "In Patagonia", primeiro livro, em 1976. Sempre obcecado pelo movimento nômade. Era porteiro da Sotheby's, tinha um olho (os dois, na verdade) bom pra avaliação, virou o especialista da casa para arte moderna. Depois de um tempo, desenvolveu problema nos olhos, o oftalmologista lhe disse que era incrível e, por mais metafórico que pudesse parecer, o problema acontecia em função da concentração de suas (de Chatwin) retinas em detalhes, hipertrofia?
A Casa oferece uma viagem, o médico disse espaços abertos, ele ouve do gerente: que lugar da Europa você gostaria de descansar os seus olhos em; ele responde: Sudão. O período de viagem ele publica como notas nas “Songlines”. Fica seis meses viajando pela África, não volta para a Sotheby's, começa antropologia em Edimburgo, desiste, escreve para o Daily News resenhas e pequenos artigos sobre nomadismo.
Desde criança Chatwin desenvolveu uma relação fundamental com a Patagônia — o avô tinha uma pele de milodonte, um mamute esbelto da Terra do Fogo, e a pele era, e foi sempre, uma espécie de símbolo da aventura para ele. Um dia envia da Argentina um telegrama ao editor do jornal: gone to patagonia pt. Na mochila, “Viagem à Armênia”, de Mandelstahn.
Uma das linhas condutoras da viagem é checar a trilha do Wild Bunch, de Etta Place, Butch Cassidy e Sundance Kid, que chegaram a ser estanceiros na Patagônia (contrariando a lenda, equivocada, da morte após o assalto na Bolívia, como no filme).

Pratt era italiano. Foi com os pais para a Etiópia aos 15 anos, serviu o exército lá, virou marinheiro e foi parar na Argentina. Morou 15 anos em Buenos Aires e lá começou a fazer quadrinhos sob influência do trabalho de Milton Cannif.
Evolui, ainda bem, e começa a fazer uma sofisticação revolucionária (de forma diferente que Will Eisner) da relação desenho P&B com um texto muito mais literário que o usual, um não vive mais sem o outro, melhor: um não quer viver mais sem o outro.
Cria então, meio sem querer, aquele que será seu alter-ego: Corto Maltese, o marinheiro inoconoclasta, o cavalheiro da fortuna da virada do século xix para o xx, provavelmente o personagem dos quadrinhos que melhor representa o viajante aventureiro romântico. Pratt e Corto funcionam como reflexo um do outro, como as ruínas circulares de Borges.

Corto vai à Argentina em 1924, no encalço do assassinato de Louise Brooks, uma das famosas polacas (como as prostitutas européias traficadas para o sul, a maioria do leste europeu, eram chamadas) da época, sua amiga de Veneza. Em Buenos Aires, sempre ao lado de Fosforito (malandro argentino, milongueiro que poderia ser personagem de Roberto Arlt) tem um encontro com Butch Cassidy, velho conhecido, agora importante homem de negócios e estancieiro.


Quero trabalhar com os textos que eles escreveram, ou foram escritos sobre eles, sobre viagem, especialmente Patagônia e Argentina, dentro da estética da escrita sampler que estou desenvolvendo.
A viagem aqui é geográfica, é narrativa, mas é também um ato simbólico da própria escrita.
No caso da escrita sampler, isso vai um pouco mais longe: a viagem, a escrita como viagem e a viagem como escrita (paroxismo da narração, escrita do corpo, se quisermos ir por aí), sempre viagens refeitas, sampleadas das viagens mitológicas, aventuras referenciais, narrativas fundadoras.
Chatwin rastreando e sampleando os rastros do Wild Bunch, Pratt ficcionalizando a própria trajetória e sampleando, entremeando, contextualizando as aventuras de Corto nos momentos históricos do começo do século xx.
Pensei um fazer um texto bem despretencioso, curto, uma espécie de sobrevôo (com alguns mergulhos) pela Argentina e Patagônia com esses viajantes.
Como diz Renzi, que mais se pode narrar senão viagens ou crimes?

Saludos,
M.

quarta-feira

o procedimento sampler

Pensar o movimento de desfiguração como ato amoroso de interesse. Desfigurar a forma é interrogar a imagem, reinventá-la, uma saída do amor gregário da imagem consensual, do amor fascista; desfigurar como paixão da interpretação. Nessa hipótese,a desfiguração daria espaço à apropriação da forma anterior desconstruída para reformulá-la, refigurá-la, criar uma outra figura. O procedimentro sampler, digo a ele, como uma re-construção do já figurado em busca de uma nova música, um novo tom, um novo corpo escrito possível. Contar as suas memórias como se fossem de outro, contar as outras como se fossem suas. O escritor contemporâneo, afirmo, diz, busca construir uma memória pessoal que sirva, ao mesmo tempo, de ponte com a tradição perdida.

terça-feira

invasores de corpos:admitindo o caos

No começo está o fim.

Não significa que, daqui para a frente, não haverá forma na arte. Significa apenas que haverá uma nova forma, e que essa forma será de um tipo que admitirá o caos, sem tentar dizer que o caos é na verdade outra coisa. Encontrar essa forma: eis a tarefa do artista hoje.

Ponha sua mão na minha testa um momento para me dar coragem.

Cada palavra é um fim e um começo.

Toda ação é um passo dentro do fogo.

segunda-feira

pedro rubro:ungeziefer remix

A Academia espera de mim um relato científico, espera que apresente à audiência uma descrição coerente e factível da experiência. Mais uma vez preciso desenvolver minha mimese estratégica. Não é o que esperam de um símio, um primata? Como cheguei onde cheguei? Como me tornei humano, ou melhor: como me tornei um ser racional? Nada mais fácil do que imitar o homem, foi o que descobri. O que não significa que tenha sido fácil. Na verdade, foi minha única oportunidade de sair, escapar da jaula, foi o que vislumbrei. Há os que morrem nas grades. Fiz o que era esperado de mim como macaco. O meu mérito foi perceber a expectativa e aprender a caracterização primitiva do homem. Poderia ter sido mais sofisticado desde o início, mas não teria sido compreendido, não teria atingido meu intento, não teriam se reconhecido os homens em mim, não aqueles, não os senhores. Hoje, passados os anos, posso me dar o luxo de pequenas ironias que passam como idiossincrasias simiescas, mas que o meu espírito animal de primata se regozija num sorriso macacal interno. Naquela época, no início, meio enjaulado meio encaixotado no navio, essas reflexões não teriam vingado, não havia interlocutores. Não que os haja agora, sem demérito para os senhores, mas, permitam-me dizer, permitam-me a expressão, estou num entre-lugar da existência. Tiro proveito do fato de estar na presença de uma seleta distinta das maiores inteligências do país, como orador, como testemunha vivente, para fazer pequenas digressões e elocubrações tão ao gosto humano. Espero não ser mal compreendido. Não pretendo aqui reproduzir, em outro nível, o meu percurso mimético, até porque o que foi mimese hoje está incorporado. Não poderia, muito provavelmente, voltar a viver na selva africana como vivi um dia, longínquo, por certo; acredito que seria preciso estudar o que é ser macaco como estudei o homem para reproduzir-lhe um espelho monstruoso. Um espelho no qual nenhum dos senhores se enxerga, como não se viram refletidos tampouco os meus companheiros humanos de viagem que me impingiam macaquices e dos quais copiei o modus operandi. Não tenho pares, como dizia. Tenho, isto sim, espaços de interseção em que me comunico. Aqui estou, de fraque, enquanto me aguarda em meus aposentos minha companheira macaca, uma chipanzé semi-amestrada que prefiro não ver durante o dia pois reconheço em seu olhar a loucura do perturbado animal amestrado, e isso só eu reconheço e não posso suportar. No entanto, nunca estou realmente em nenhuma parte — nem lá, com ela, nem aqui, com os senhores. Mas estou vivo, e pensar não é, para mim, uma abstração. Não reproduzo o raciocínio alheio como o fiz com os gestos e o comportamento. Era tão fácil imitar as pessoas. Nos primeiros dias aprendi a cuspir. Cuspimos um na cara do outro; a única diferença era que depois eu lambia a minha e eles não lambiam a deles. Repetir o pensamento dos outros também não me impõe nenhuma dificuldade. O que digo aqui é que penso, ainda que a partir deste espaço solitário, deste entre-lugar, como o chamei, penso, e o faço por mim mesmo. Se há uma coisa que posso dizer que aprendi com a minha experiência na sociedade humana é que pensar pressupõe reflexão, requer um contato do ser consigo mesmo, não é um processo que pode ser copiado como um cuspe. O pensamento é um ato de independência, e não pode ser um mimetismo, pois o sendo deixa de ser pensamento para tornar-se um ato de submissão. No pensamento está a possibilidade da revolução, da insubordinação silenciosa. O tempo está ao lado do pensamento, e as palavras virão quando se fizerem necessárias, assim como os atos. Quando me foi imprescindível falar, falei. Como num passe de mágica disse “alô” e saltei com esse brado dentro da comunidade humana e senti, como um beijo em todo o meu corpo que pingava de suor, o eco: “Ouçam, ele fala!”. E, após um breve interregno de mudez, segui falando até hoje. E segui pensando, refletindo sobre minha condição de ex-macaco humanizado. Quando digo que aprendi que o pensamento, e faço mais um esforço para não usar a palavra raciocínio, cuja raiz ligada à razão e aparentada com a lógica ameaça o pensar com um possível mecanicismo matemático, quando afirmo que do meu período com os homens pude apreender o sentido da relação com o pensamento, não significa dizer que o próprio homem tenha feito isso, ou que todo ser humano tenha a capacidade de refletir sobre a sua capacidade de reflexão. Se assim fosse, poderíamos aqui falar, discorrer orgulhosamente, sobre a faculdade de raciocinar; entretanto, creio que não é o caso, não me levem a mal. Estava na África, em meu habitat, vivendo minha vida de macaco, e no outro segundo estava preso, enjaulado no porão de um navio, cercado de homens nobres em sua função de superiores coletores de espécies (e raças) distintas. Ia beber água com meu bando e fui atingido por dois tiros, capturado desacordado, manco até hoje. Eu escolhi sair. Vejam bem: não fugir, mas sair. Era preciso uma saída para qualquer lugar, e a minha saída foi invadir o ser humano e criar este entre-espaço em que estou e no qual caibo perfeitamente. Mas agora quero invadir o espaço do pensamento humano de outra forma, por dentro estando fora, e por fora estando dentro; quero, e preciso, dar voz a quem não tem, falar por eles. E quando digo falar, não me refiro a tomar-lhes lugar, mas abrir um espaço em sua intenção. Pensar é refletir. E toda reflexão propõe uma ação. Falo no presente, invocando o passado para o futuro: É preciso colocar um fim à opressão e à exploração, onde quer que estas ocorram, e garantir que o princípio moral básico da igualdade de interesses não se restrinja arbitrariamente aos membros da espécie humana, nem, mais particularmente, a determinados membro da espécie humana. É chegada a hora da libertação. Um movimento de libertação é uma exigência de pôr fim ao preconceito e à discriminação baseados numa característica arbitrária, como a raça, o sexo ou a espécie. Um movimento de libertação requer uma expansão de nossos horizontes morais (e intelectuais). As práticas consideradas desde sempre naturais assumem um ar cruel, arcaico e primitivo, porque são resultado de um preconceito injustificável, inaceitável. Falando francamente, meus senhores, sua origem de macaco, até onde tenham atrás de si algo dessa natureza, não pode estar tão distante dos senhores como a minha está distante de mim. Mas ela faz cócegas no calcanhar de qualquer um que caminhe sobre a terra — do pequeno chimpanzé ao grande Aquiles. Que o diga meu primeiro treinador, que abdicou (ou foi abdicado) de suas funções e precisou ser internado tal a intensidade com que a natureza de macaco escapou de mim às cambalhotas e o abalroou, fazendo dele um arremedo de símio. Mas isto é um detalhe. Volto ao meu ponto: quem poderá afirmar com segurança e certa honestidade que nenhuma de suas práticas pode ser legitimamente questionada? É preciso avaliar nossas atitudes a partir do ponto de vista de quem sofre suas conseqüências, e as conseqüências das práticas que decorrem delas. Se os senhores, me desculpem a franqueza, conseguirem realizar essa inusitada transposição mental, pode-se descobrir, nessas atitudes e práticas, um padrão que opera de modo a beneficiar constantemente um mesmo grupo — normalmente o grupo a que cada um dos senhores pertencem, e a que eu, de certa forma, também pertenço agora como monstro — às custas de outro grupo, outra comunidade. Por isso lhes digo: é preciso urgentemente dar início a um movimento de libertação: libertação do oprimido e libertação do opressor. Essa libertação não acontecerá concomitantemente, o que é uma lástima, principalmente para os que virão depois de nós, principalmente para os que virão depois dos senhores, pois um de seus filhos irá acordar certa manhã transformado num inseto — ou, se preferirem a perfeita expressão alemã: acordará transformado num ungeziefer.